segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre Sacis e Crianças de Rua

Em comemoração ao folclore brasileiro, todos os anos, em meados do mês de agosto se trabalha nas escolas lendas, parlendas, entre outras manifestações culturais. Em meu primeiro ano de docência, a escola em que trabalhava na época decidiu por ainda encerrar o bimestre com cada turma apresentando uma peça de teatral. Foi um dos momentos mais ricos de aprendizagem cultural para as crianças. E, particularmente, para a minha turma, também foi um período de fortes aprendizagens político-sociais: nossa turma escolheu apresentar a obra “Os 10 Sacizinhos”, de Tatiane Belinky.
Entre as nossas aprendizagens sobre diversas histórias da cultura popular, trabalhamos com Tarsila do Amaral e as suas representações da figura da Cuca e a expressão da lenda relacionada a outras obras da artista, que se remetem ao trabalho. Trabalhamos também com Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato e todas as possíveis discussões e representações sociais e imaginativas presentes; inclusão social com questões referentes ao racismo, negritude, pessoas com deficiência e o uso de drogas. E para além disso, ainda deu para trabalhar sobre a realidade de crianças de rua.
O que quero chamar a atenção para esta postagem, não se remete em especial ao quanto aprendemos naquele bimestre (especialmente eu, como professora). Mas sim, a realidade de muitos Sacis presentes em nossa sociedade. Sempre tive um incomodo muito grande da figura travessa retratada ao menino peralta de uma perna só. Sempre me apareceram questões sobre o fato de ser uma criança órfã, cuidada e ajudante de uma figura folcloricamente temida: a Cuca.
Comecei a procurar associações dos nossos meninos de rua com o Saci, sem sucesso de encontrar qualquer estudo fazendo relações, após descobrir em meus estudos que os botos cor-de-rosa existem entre os povos Amazônicos, disfarçando a violência que meninas adolescentes, jovens moças, mulheres sofrem dos homens familiares ao seu convívio.
O Saci está presente em nossa realidade como os meninos peraltas, esquecidos pela sociedade, transfigurado em diabinhos, e por isso, uma desculpa para odiá-los e torná-los marginalizados aos nossos convívios. Serem negros, vir de onde ninguém sabe e desaparecer sem deixar rastros, usarem um cachimbo e ter mãos desfiguradas não são meras semelhanças, se não, formas culturais que nosso povo foi criando para desaparecer com a realidade de crianças desfavorecidas, ou ainda, quem sabe, de fazê-las lembradas, ainda que por suas peraltices, mas, presentes na sociedade brasileira.
            Esse texto não tem uma pesquisa científico-acadêmica por trás, se não, fruto das reflexões de uma professora classista, tomada a partir das demandas de sua turma. Meninos-sacis de rua estão por toda parte. Basta olharmos seus roda-moinhos de ventos, e o abandono na história concreta de nossa sociedade, cuidado por figuras malévolas, que se favorecem de suas peraltices. As Cucas de nosso Brasil são reais com direito a nomes, uso de armas e colarinhos, e detém poder de formas diretas e indiretas.
A lenda do Saci ainda se torna mais real em minha cabeça, ao associar com a história de meninos de ruas, que andam e sobrevivem em bandos, retratadas no romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. Ninguém os pegava, não sabiam de onde viam, para onde iam, mas uma cidade inteira os odiava, lhes confinavam a cadeias, lhes esqueciam ao abandono da própria sorte, esquecendo-se do direito a cuidados, estudo, saúde, lazeres...


Foto: Autor desconhecido. Local: Distrito Federal.
Imagem coletada em busca livre na Intenet.


Começo a cada vez mais a achar que toda lenda tem um fundo em si, de verdade, nascida para obscurecer ou amenizar uma tão dura realidade de um povo. O apelo aqui é para que tornemos visíveis os nossos reais Sacis, que peraltam por aí, para sobreviver e reagir ao esquecimento que nossa sociedade lhes força a conviver.
Não sei se pelo abandono familiar e social a que tem direito uma criança, pelo cachimbo em suas mãos, ou pela negritude da sua pele, sei apenas que sempre me simpatizei com essa figura. Tenho limitações quanto ao que fazer. Mas de fato sei, eles existem, e não passam despercebidos aos meus olhos. Jamais passarão. Eu acredito em Sacis. E o mais perigoso: acredito em sua juventude!

*Caso queira saber mais sobre o planejamento bimestral dos conteúdos trabalhados, envie um e-mail para deise.rocha@hotmail.com. Terei o prazer de fazer uma troca de ideias.